terça-feira, julho 11, 2006

Portfólio de João Pereira













3 comentários:

atumnespereira disse...

A ARTE (para mim - 1998)

A arte para mim, é fundamentalmente a forma que tenho de apresentar aos outros e por vezes a mim próprio, o resultado do que vejo e sinto, constituindo ela, o resultado das minhas reflexões no e sobre o mundo. É também o que o nó da garganta não consegue verbalizar. É sempre um processo inacabado, parcial, em que as conclusões de hoje nos levam a novas interrogações amanhã cujo resultado se prevê inevitavelmente parcial. Contudo, ela resulta na minha maneira de me conhecer, conhecer o mundo e me medir com este.
Três vectores importantes do meu trabalho - o auto conhecimento, o mundo, a minha biografia; confluem numa entidade - o Corpo - o meu corpo, o meu instrumento. Citando Merleau-Ponty (O Primado da percepção), Transportamos (o nosso corpo) sem instrumentos, como por magia, porque é nosso e porque, através dele, temos acesso ao espaço. Para nós, o corpo é muito mais do que um instrumento ou um meio; é a nossa expressão no mundo, a forma visível da nossa intenção. Ou citando ainda Antony Gormley, "eu sou aquele objecto, o que me parece muito vantajoso e muito simples. Nunca se está dentro de uma substância como se está dentro do nosso corpo". Tal como ele, "é uma vantagem de que me quero servir o mais possível". É contingentemente com ele que eu acedo ao mundo e nele me exprimo.

Toda a arte é auto-retrato

Ao considerar o indivíduo como o lugar geométrico da produção artística, em oposição à tentativa modernista de socializar o seu produto(r), o artista contemporâneo, (re)encontra a possibilidade de se considerar como "a medida de todas as coisas". O corpo torna-se então, por vezes, o lugar metafórico das obsessões que povoam o espírito do artista e a imagem, é então, a própria obra na qual coincidem todos os aspectos semânticos de uma atitude previamente construída por ela própria e que reúne num acto síntese a verdadeira noção de auto-retrato.
O acto de auto retratar-se é sempre precedido de uma encenação, que pode servir para as mais variadas funções: auto observação, introspecção e auto-questionamento, expressão de um certo estado de psíquico, ou escolha de um papel por detrás do qual o artista procura dissimular-se. A auto-representação assenta também na noção de identidade, e para que esta se defina, não são necessárias só imagens reais; fixadas pelo olhar ou pela objectiva da máquina fotográfica, todo o sentido da memória, dos gestos às atitudes mais banais, constituem também elementos fundamentais.
A emergência involuntária do eu numa obra, constituía para Leonardo de Vinci um defeito sendo por ele condenado como quando afirma: "O artista tem que olhar-se, procurar os seus defeitos, lutar contra o narcisismo constitutivo do sujeito e duplamente constitutivo do pintor. Uma tendência natural, leva o artista a projectar as suas próprias deformidades sobre a tela e a comprazer-se nessa projecção. A obra exige então do artista que ele efectue uma dupla ultrapassagem do narcisismo". Num primeiro tempo, adverte Leonardo, "o artista deve considerar-se tal como ele é, consentir em perder o seu ego ideal, procurar os seus defeitos e inscreve-los na sua memória, examinar o seu corpo, e regista-lo para evitar num segundo tempo, de tratar o quadro como um espelho no qual pintaria, com prazer, as suas disformidades.
Neste fim de milénio, o corpo é novamente um foco importante de reflexão. Atravessamos uma época em que se podem separar partes de um corpo e transplantá-las para outro; em que certas máquinas podem assumir as funções de orgãos humanos; em que se pode prolongar a vida do corpo mesmo para além da morte do tronco cerebral; em que se podem provocar modificações genéticas ou até clonar seres humanos; em que um feto pode estar em gestação num útero artificial ou numa barriga de aluguer; em que se modificam caprichosamente corpos e rostos, para os adequar ao ideal momentâneo de beleza. É uma época de grandes interrogações acerca deste e da sua identidade como o provam, por exemplo, o recente Festival Atlântico e a exposição Anatomias. Esta entidade que sempre foi preocupação, leva, nos anos sessenta, os artistas da Body Art a trataram os corpos, os seus corpos, como matéria escultórica. Alguns pensaram que o corpo devia ser utilizado exactamente da mesma maneira que outro qualquer material artístico. Outros, tinham a convicção de que ele tinha atributos próprios e únicos a que valia a pena prestar atenção mesmo que... fossem vulgares - as mais vulgares e desprezadas funções corporais ( caminhar, respirar, limpar o nariz, etc.) foram investidas de grande solenidade. Propagou-se um espírito de iconoclastia duchampiana temperada com ironia e ingenuidade. Houve porém artistas que exploraram uma via mais masoquista na qual o corpo era objecto de cortes, queimaduras ou outro género de "abusos" com o objectivo de por a descoberto as neuroses, os medos, os limites. Estas obras corporais, podiam ser acontecimentos públicos, decididamente exibicionistas ou ritos totalmente solitários representados na solidão do estúdio do artista. Porém, todas estas acções compartilhavam o carácter efémero, acabando a fotografia por desempenhar um papel indispensável na fixação destes momentos únicos, transitórios e irrepetíveis.
Hoje em dia, o culto da perfeição física conduz amiude à obsessão e à neurose. A crescente incidência de desordens nutricionais como a anorexia e a bulimia, além do recurso cada vez mais presente, à cirurgia estética, revelam a existência de um lado obscuro na busca da perfeição corporal. Neste sentido, os torsos de Coplans, densamente cobertos de pelos, sardas e marcas, erguem-se acusadores frente a esta prática enganadora da carne que leva o homem ocidental deste fim de milénio a temer e a minimizar a sua própria e única fisicidade. Esta atitude moral, esta dimensão, também se encontra presente na minha última série de trabalhos a que dei o nome de "Verónicas e Sudários". Nela, procurei expressar a dimensão sagrada do corpo. Mesmo das partes consideradas sujas, impróprias ou até fora dos cânones.



O Indivíduo e a Memória
Actualmente, dá-se grande importância à forma como confluem as recordações individuais, que configuram o passado de cada indivíduo, com experiências de vivência colectiva, que constroem a história dos povos e sociedades. A Documenta de 1972 assim como a Bienal de Paris do ano seguinte, trouxeram-nos uma gama de experiências, oscilantes entre um neo-dadaismo pouco ortodoxo, elementos da Arte Povera e estímulos da Contra Cultura, que ficaram conhecidos como Mitologias Individuais. As Mitologias Individuais, opõem-se a toda a classe de mitos colectivos e tendem para a ruptura com todas as convenções e normas. Tanto do ponto de vista do produtor como do receptor. É graças à identidade singular do criador consigo mesmo e com as suas próprias vivências que este se subtrai, na medida do possível, a uma tipificação serrada. A prática artística torna-se assunto do indivíduo correspondente, que se torna, enquanto ser, a sua própria noção e objecto da arte. Como afirma S. Marchán Fiz, as Mitologias Individuais são um passo mais, numa linha próxima da Arte Povera, para a superação da fronteira entre a actividade artística e as outras actividades humanas, e entre o artista (fruto da divisão social do trabalho) e a criatividade de outro ser humano qualquer. A proposta final e radical seria que, cada qual, se expressasse e fizesse arte a seu modo e gosto. Estes artistas, não se preocupam com a adequação entre significante e significado à escala social, senão que, o ponto de referência para o significante da obra é o mundo próprio de cada indivíduo. potenciando neste aspecto uma consciência de individualidade e singularidade que chega a ser, em certas ocasiões, esquisofrénica." O autor refere ainda que"a Mitologia Individual se desenvolve como um símbolo individual e surge quando numa pessoa, a união associativa e criadora de certos complexos ou objectos perceptivos exteriores, em qualquer domínio sensorial, é tão intensa que uma imagem ou vivência desencadeia toda uma série de concomitâncias. Assim, este símbolo individual, em princípio não deseja converter-se em colectivo e refere-se somente a complexos de vivências e ideias que, não só não têm que ver, numa valoração cultural colectiva, com códigos e convenções sociais, mas que se opõem a eles, tentando criar o seu próprio mundo individual de valores, muito distinto do colectivo. Semelhantes símbolos individuais vinculam-se estreitamente com experiências libidinais do próprio ego (narcisismo)." Tudo pode ser Arte e as Mitologias Individuais, são mais uma reacção às diversas conotações simbólicas e colectivas da década de sessenta e recusam tanto as Mythologies (R. Barthes) consumistas da Pop ou do Hiper realismo como as conquistas tecnológicas, símbolos da dissolução do indivíduo. Se as experiências intensas, individuais destes símbolos parecem ser uma premissa para qualquer tipo de expressão, também é verdade que o símbolo individual, alcança o seu maior efeito na sua conversão em fetiche, como objecto de adesão anormal por parte do próprio indivíduo. Esta parece ser, em algumas ocasiões, uma das tónicas desta espécie de reducionismo subjectivista, presente em algumas destas práticas. Por outro lado, a aparição deste símbolo, não é o mesmo que o seu efeito frente aos demais. Por isso se indicou que, tanto podem pretender que o espectador o aceite, como endereçar-lhe um convite para que crie a sua própria mitologia, o seu próprio mundo vivêncial. Esta parece ser a proposta que se depreende, apesar de se apresentarem em canais, como a exposição, que aspiram a uma consagração social.
Urge falar da obra de Ana Mendieta, toda ela uma resposta ao problema da identidade perdida, e que tende a fazer da busca das raizes que foram negadas a sua causa. O que espanta na sua obra, é a resposta conseguir-se manifestar, mesmo com o dramatismo da sua vida, numa linguagem de uma carga enormemente poética, o que torna ainda mais eficaz a tremenda carga crítica da sua proposta. Mendieta viveu uma vida marcada pelo sentimento desgarrado do apátrida, circunstância que a levou a regressar à natureza e à Mãe Terra para encontrar o alento que não encontrou na sociedade. A sua obra mergulha na procura de uma santidade que é mais do que evidente no desejo de ver convertido o seu corpo em algo de sagrado, num objecto espiritual em que se centra a liturgia da vida e da morte. E busca, segundo ela mesmo confessou, "laços emocionais com a natureza para restabelecer a unidade com o universo". O valor totémico das suas esculturas, a visão conceptual das formas naturais transformadas em sujeitos capazes de negar a realidade, ou o ensaio com os materiais que a terra e a natureza oferecem, são eixos de um trabalho paralelo à performance com que Mendieta reafirma a sua dívida com a vida e o tributo que tem que lhe prestar. São trabalhos muito mais corporais, onde transparece a força intrínseca do seu discurso e são a prova da sua visão da realidade e da sua capacidade de síntese, das suas perguntas sobre o de onde viemos e aonde vamos, das suas ideias sobre o convencional e como transgredi-lo. O interesse que, ainda hoje, continua a suscitar a obra de Ana Mendieta, reside na sua capacidade para submeter a sua vontade de experimentação aos limites do corpo. O seu trabalho produz-se num contexto específico e particular, entre as fronteiras fictícias e reais da sua geografia e do seu próprio corpo, que adopta como medida de todas as coisas. Embora as suas propostas sejam múltiplas a conceptualização destas parece derivar de instâncias redutíveis a um só discurso, a partir do qual o retorno à natureza tem um sentido mais político do que estético. Como quando a orfandade individual é uma orfandade colectiva ou quando o vazio se recorta no interior do perfil das suas silhuetas desenhadas na terra. Mendieta adoptou, desde o princípio, o estudo de certos tabus e transgressões, que a levaram a abordar o sacrifício, tal como é compreendido em certos rituais primitivos - "Queria que mis imágenes tuvieran fuerza, que fueran mágicas". Ana Mendieta reapropria-se do corpo - uma massa anónima, carente de vós para uma maioria - e inventa um panteísmo em que todas as produções da natureza têm o mesmo valor. Para ela, a natureza, não é só a nossa herança biológica mas também o nosso lugar original e propõe um retorno a ela. Este retorno, implica uma tomada de consciência da nossa pertença comum e uma devolução que se pratica no fim de uma integração do corpo no meio natural. "Mi arte" dizia em 1983, "se basa em la creencia em una energia universal que corre através de todas las cosas: del insecto al ombre, del ombre al espectro, del espectro a las plantas, de las plantas a la galaxia." A reflexão contemporânea sobre a incorporação do corpo nas práticas artísticas ou a investigação dos seus limites, longe de estar esgotada está em processo de ampliação.

A Antropologia

Como afirma José António Fernandes Dias" uma teoria da arte, não pode hoje dispensar uma abordagem antropológica da arte. Esta, contribui para o entendimento das práticas artísticas da nossa modernidade e post-modernidade: nas suas manifestações concretas, nas concepções que dela se fazem na vida quotidiana e no mundo dos especialistas, nos seus usos." A Antropologia contaminou de tal forma o mundo da arte desde os anos sessenta a esta parte que, referindo-nos às relações entre arte e ciência se poderia afirmar que: do mesmo modo que o cubismo está contaminado pela Física e pela Lei da Relatividade, o Surrealismo pela Psicanálise, a arte que surgiu após a década de sessenta, está ligada e fortemente contaminada pela Antropologia. Estes ecos da Antropologia no mundo da arte surgem a vários níveis: vão desde a alteração da situação arte nas nossas sociedades, que, tal como na vida dos povos primitivos não surge separada mas perpassa todos os níveis da vida social; à própria escolha dos materiais para a expressão, que passa a ser orientada pelas potencialidades destes do ponto de vista semântico; e até, do ponto de vista dos operadores, surgem alterações como, por exemplo, o modo como alguns artistas copiam ou tomam como modelo para a sua actividade o trabalho do etnógrafo.
Nos meus trabalhos dos últimos anos, tal como Tápies, "pretendo dar uma concepção global do mundo... Eu direi que continuo a desejar fabricar objectos mágicos, carregados de energias que se transmitem ao público e gostaria que contagiassem o público que os visse e tocasse". Contaminado por este espírito primitivista não procurei nas tribos primitivas esta dimensão mágica. Achava e acho ainda que dentro da minha tradição rural, é possível descobrir essa dimensão. O primitivo, no sentido de primeiro, pode estar aqui mesmo ao lado sem a necessidade do exótico. Foi assim que surgiu a Máscara de Fernando Pessoa, estes Sudários ou até a instalação no Cântaro Raso da Serra da Estrela Abrigos dos ventos dominantes. Todas estas obras estão imbuidas do sentido da procura das coisas primordiais e da noção da dimensão mágica que a arte pode ter. Na aproximação aos complexos mito-simbólicos da minha cultura ( a minha cultura camponesa de origem),estes são ressemantizados na contemporâneidade impondo-lhes léxicos formais e estratégicos extraídos da Arte Conceptual, da Land Art, da Arte Povera ou até da Body Art, que pretendo que resultem em como que, desprendimentos de um pensamento mitológico vivo, posto em função do desenvolvimento de uma reflexão metafórico-filosófica acerca do Homem, da vida, da natureza e da sociedade, unida com princípios que plasmem uma visão do mundo. Ultrapassar o meramente individual e relacionar as carências individuais com o descontentamento implícito na condição humana. Tal como Gormley "vejo o artista como um trabalhador com um trabalho especial a desenvolver. Especialmente propondo problemas a serem explorados".


João Pereira 1998

atumnespereira disse...

ARTE CONTEMPORÂNEA E MUNDO RURAL
Instrumentos e práticas agrícolas

As complexas relações entre arte e Natureza, são também o reflexo do lugar que na Natureza é ocupado pelo homem. Para uma arreigada, tradicional e dominante corrente do pensamento artístico, arte não é Natureza, mas, justamente o contrário: A arte define-se por oposição a Natureza. Quanto ao lugar que o ser humano ocupa na Natureza temos duas correntes fundamentais: A primeira, reconhece a estreita interdependência do homem com todo o resto. A Natureza engloba tudo sendo uma totalidade vivente e unitária da qual o homem fáz parte. Natureza é então, um individuo que se diversifica em inumeráveis existências, todas elas abertas a nascer e a morrer; natureza é mundo físico, é substância plural que permanece mudando, é vida. E resulta tão absurdo excluir deste campo ontológico a técnica como ignorar que a operação recorrente da técnica - usar meios com vista à realização de fins -, é o fundamento de todo o organismo vivo, o ABC da natureza. Para esta corrente, quando alguém invoca uma heterogeneidade entre o natural e o técnico, ou não sabe bém o que diz, ou então expressa um credo monoteista clássico, cujo primeiro artigo de fé é a mútua repulsão entre expírito e matéria. Nesta corrente, a arte pode ser considerada Natureza na medida em que assume e prolonga os seus processos. Esta convicção, já deve ter animado Goethe, que definiu a obra de arte como "uma obra suprema da natureza executada pelo homem de acordo com as leis verdadeiras da natureza". Semelhante pensamento encontra-se também, por exemplo, nas secretas vinculações estruturais que encontrava Mondrian entre a natureza e a pintura, formuladas na sua Nova Plástica ou, noutro âmbito, na proposta de Dorfles de considerar também Natureza as criações humanas, ampliando as dimenções e manifestações da primeira. Quanto à segunda, ela assenta numa definitiva excisão entre Cultura e Natureza, devido à consideração dominante de Natureza como o que permanece como não tocado pelo ser humano. É fruto da ideia, que na tradição ocidental, sobretudo a partir da era cristã, se tem de Natureza e que se caracteriza, essencialmente, por não incluir o ser humano dentro desse conceito, situando-o num nível superior e assumindo o mandacto de dominar um meio que já não poderá ser divinizado mas, em todo o caso, respeitado como reflexo do Criador. Para esta corrente, Natureza é o que não foi tocado pelo homem. A Natureza, concidera-se, cada vez mais, como um bem físico a administrar seguindo os desígnios de Deus e o homem está chamado a completà-la a melhorà-la, adaptando-a às suas necessidades.

O mundo rural, tal como o mundo urbano o imagina, não existe e pode bem nunca ter existido. O que tem existido sempre é uma imagem do rural construida pelo urbano, e que este tenta a todo o custo que se mantenha. Ou seja, o que temos são vários olhares sobre o mundo rural - etnográficos, antropológicos, sociológicos, estatísticos, etc - e que constroem uma imagem sobre este. A imagem corresponde à realidade? A imagem é só isso, uma imagem. O mundo urbano ao longo dos tempos foi descrevendo o mundo rural ora como a reserva moral e cultural, ora como o culpado do atrazo civilizacional. O mundo rural, é comumente idealizado e comparado com a arcádia, onde todos são tios ou primos, toda a gente se dá bém e divide com o próximo quando este necessita, contudo, o mundo rural, tal como o mundo urbano, é um mundo cão.

Disse Rosalind Krauss, que a partir dos anos cinquenta a escultura se experimentava como negatividade da arquitectura e da paisagem: "Era aquilo que situado em cima ou defronte de um edifício, não era um edifício; ou aquilo que, inscrito numa paisagem não era uma paisagem(...) era a categoria resultante da não paisagem e da não arquitectura(...). Resulta então que, a não arquitectura não é mais do que outra forma de definir a paisagem e, a não paisagem é, obviamente, a arquitectura." E que, a partir dos anos 60, a produção dos escultores começou, gradativamente, a focalizar a sua atenção nos limites externos desses termos de exclusão. O campo ampliado, gerado pela problematização do conjunto de oposições faz surgir, logicamente, três categorias facilmente previstas - reduzir escultura aos termos neutros - não paisagem/não arquitectura - não fornece motivos para não imaginarmos o termo oposto (que tanto poderia ser paisagem como arquitectura) e que R.Krauss denominou de "complexo". Fazer esta operação é admitir no campo da escultura dois termos anteriormente vetados: paisagem e arquitectura. Era, portanto, necessário reconciderar a escultura dentro de um quadro histórico mais vasto, abordando a construção das suas genealogias com base em dados que já não remetem para decénios mas para milénios. Como vemos, escultura, na lógica expressa por R.Krauss é mais o termo mediano privilegiado entre as duas coisas que ela não é; a escultura é antes, só um termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades diferentemente estruturadas. Ganha-se assim "permissão" para pensar essas outras formas.

Em 1967, em Inglaterra, Richard Long realiza "A Iine Made By Walking" uma linha reta "esculpida" no terreno, pisando simplesmente a erva. O resultado desta acção é um signo que ficará somente registado em negativo fotográfico e que desaparecerá logo que a erva volte a crescer. Pela sua absoluta radicalidade e simplicidade formal, "A Line Made By Walking" foi considerada um episódio fundamental da arte contemporânea. Long, combina duas actividades aparentemente separadas: a escultura (a linha) e o andar (a acção). Esta obra produz uma sensação de infinito. É um comprido segmento que se detem nas àrvores que fecham o campo visual, mas que poderia continuar e percorrer todo o planeta. A imagem da erva pisada contém em si mesma a presença de uma ausência: a ausência da acção, a ausência do corpo, a ausência do objecto. Por outro lado, trata-se sem dúvida do resultado da acção de um corpo e de um objecto, algo situado a meio caminho entre a escultura, a performance e a arquitectura paisagista. As obras posteriores de Long constituem um prolongamento e um enriquecimento deste primeiro gesto, do qual não restará qualquer vestígio sobre o solo. O fundamento do trabalho de Long, é o andar, e o cenário onde estes se realizam é um espaço natural e sem tempo, uma paisagem eternamente primordial, onde a presença do artista constitui já por si um acto simbólico. Para Long, a Natureza, é uma Terra Mãe inviolável, pela qual é possível andar, desenhar figuras, mover pedras, mas não devemos, contudo, provocar-lhe alterações radicais. As suas intervenções, não incidem em profundidade na crosta terrestre, só transformam a sua superfície de um modo reversível. O meio utilizado é o seu próprio corpo, as suas possibilidades de movimento, o esforço dos seus braços e das suas pernas. A pedra mais grande que utiliza é a que pode deslocar com as suas própria forças e o percurso mais longo é o que o corpo pode suportar durante um determinado período de tempo. Usa o corpo como um instrumento para medir o espaço e o tempo. Mede, usando as potencialidades do corpo, as suas próprias percepções, assim como as variações dos agentes atmosféricos; utiliza o andar para registar as mudanças, da direcção do vento, das temperaturas, dos sons.

Em Portugal, Alberto Carneiro - a quem se deve o primeiro manifesto para uma Arte Ecológica (1968) - afirma: "A arte faz-se para transformar as imagens do quotidiano/.../A arte ecológica será o renascer duma alegria natural no encontro com a natureza renovada e já infinitamente próxima/.../A arte não está na presença física do bisonte da Altamira, mas sim na posse que ele significa/.../A arte ecológica será um regresso à origem das nossas próprias fontes/.../A natureza recriada à nossa imagem e semelhança: nós dentro dela e ela polarizadora dos nossos sentimentos estéticos/.../Uma nuvem, uma árvore, uma flor, um punhado de terra situam-se no mesmo plano estético em que nos movemos, são parte integrante do nosso mundo/.../Nós não afirmaremos que uma árvore é uma obra de arte. Nós apenas diremos que poderemos tomá-la e transformá-la em obra de arte".

Na sua origem, a Land Art, surgiu ligada à reflexão minimalista que pretendia romper com a função decorativista da escultura. Esta reflexão, levou à vontade de desmaterialização da arte criando um espírito "anti-objectual e anti-artístico" que inundou as buscas dos anos 60, 70. Como na Body Art, ou na Arte de Acção, o caracter efémero das intervenções da Land Art introduz o tempo real como coordenada plástica e abriu as portas à ideia de arte como acontecimento e experiência. Nalgumas propostas, subjaz uma mobilização contra a degradação, mediatização e esquecimento a que a natureza está votada. Manifesta-se, pelo menos inicialmente, uma crítica ao sistema económico que converte as obras de arte em objectos privilegiados para o intercâmbio mercantil e também se expressa numa fervorosa vontade de se reencontrar com o ritmo e o fluir das energias do universo, abrindo uma reflexão sobre as interdependências que ligam o homem com o mundo, assinalando a transcendência dos mais pequenos gestos sobre a pele do planeta. .

A Land Art, converteu o objecto escultórico numa construção do território por meio de uma expansão para a paisagem e para a arquitectura. Contudo, a recuperação, na arte da segunda metade do sec. XX, do interesse pelo território e dos arquétipos de Natureza não podia configurar-se como um regresso ao paisagismo como se nada tivesse ocorrido antes. Que mudanças encontramos neste retorno ao interior da paisagem? Os trabalhos de terra e as construções que assim resultam, procedem da esfera da arte e devem-se fundamentalmente a ela. Mas como signo cultural, prestam-se a outras aproximações distintas. Uma das ideias trazida pelos autores de "Lá construcción de la Naturaleza"- José Albelda e José Saborit - (pag. 90), é de que, os novos espaços conquistados supõem também um afastamento da densificação artística da cidade. As obras da Land Art não competem com nada, conquistaram uma vez mais a diferença a partir dos deslocamentos. 1º: da cidade como lugar saturado de cultura, ao deserto como território virgem para a arte. 2º: Da objectualidade doméstica da obra vendível e colecionavel à monumentalidade virtual de uma experiência essencialmente fotográfica. Tráta-se somente de uma reacção crítica ao institucional, uma rebelião frente ao mundo urbano das galerias e das estratégias mercantís? Há talvez algo mais inconsciente - como em toda a arte que reflete o espírito dos tempos - , que se inscreve na, ou culmina, a inércia do paradigma industrial: o domínio conceptual y absoluto sobre o território como Natureza. Encontramos obras de arte no fundo dos oceanos - Hutchinson - , nas montanhas mais escarpadas - Long - , nos desertos e também nas zonas geladas - Goldsworthy - . Os bosques não se encontram a salvo - Grizedale - . Tão pouco o céu - Sky Art - nem o interior da terra - Vertical Earth Kilometer, de W. de Maria -. Nenhum lugar é alheio à cultura, nenhum é remoto o suficiente ou inóspito para não atrair o último conquistador, o artista, que procura novos cenários, apropriando-se dessa "naturalidade" perdida que ajuda a legitimar e a dar vida à obra. Essas obras, transportariam consigo, "o desejo de finalizar, desde a arte, o processo de colonização do território. Desta perspectiva, as earthworks justificam uma intervenção cultural naqueles lugares onde não fazia sentido construir uma paisagem cultural: os desertos, lagos estéreis, lugares hermos... Colonização simbólica neste caso, que permite chegar e deixar marcas onde nenhum critério de rentabilidade económica o consentiria. A escolha de terras no àmbito da wilderness, versão americanizada da Natureza romántica e seus sentimentos, reflete, uma vez mais, a idéia de apropriação metafórica de tudo o que o território contém: O longínquo e inóspito, o inacessível e desabitado. E também o virginal". Natureza será então, para os autores da Land Art, antes de mais, território e materialidade. Com esta arte culmina toda uma tradição que partia dos monumentos da antiguidade erguidos para reafirmar a cultura dos povos que os criaram, até chegar a este último estádio da colonisação conceptual e física atravéz da arte do território como Natureza.

Em termos gerais, a naturalização do artifício artístico pode surgir quando este se concidera, desde perspectivas naturalistas, como uma manifestação dos processos e das leis da natureza (executada pelo ser humano) ou então, quando, desde perspectrivas materialistas, é tomado como o resultado de circunstâncias tão frágeis, aleatórias e casuais como as que determinam o surgimento de qualquer ser da Natureza. Se a arte se aproxima assim da Natureza, não a imitando, mas confundindo-se com ela nos seus processos, apresentando-se desde a sua "natural artificiosidade" como uma das suas formas, ela mesmo se pode aproximar também à vida, tentando confundir-se com ela, e podendo ser praticada por qualquer um(Beuys), sem necessidade de preparação ou destreza específica. A maioria destas utópicas propostas, acabaram irremissivelmente no território da Arte institucional, a qual, pelo simples facto de ser tal coisa, imersa nos mecanismos legitimizadores da cultura e do mercado, dificilmente se pode confundir com forma alguma de Natureza (salvo a mediática).

Dizer, tal como Tápies, que "pretendo dar uma concepção global do mundo..." e que "continuo a desejar fabricar objectos mágicos, carregados de energias que se transmitem ao público e gostaria que contagiassem o público que os visse e tocasse". Ou que, como Ana Mendieta, penso que a arte "se basa en la creencia en una energia universal que corre através de todas las cosas: del insecto al ombre, del ombre al espectro, del espectro a las plantas, de las plantas a la galaxia." E que, como ela, procuro estabelecer "laços emocionais com a natureza para restabelecer a unidade com o universo" - Sendo que a natureza, não é só a nossa herança biológica mas também o nosso lugar original ao qual devemos retornar - o que implica uma tomada de consciência da nossa pertença comum. Ou que a reflexão contemporânea sobre a incorporação do corpo nas práticas artísticas, ou a investigação dos seus limites, longe de estar esgotada está em processo de ampliação. É, talvés, afirmar que grande parte dos meus trabalhos, está contaminado por um espírito "primitivista" - primitivo no sentido de primeiro - e que não procurei nas tribos primitivas esta dimensão mágica, mas dentro da minha tradição rural. Que o primitivo, pode estar aqui mesmo ao lado sem a necessidade do exótico. Foi assim que surgiu a Máscara de Fernando Pessoa, os "Objectos de Poder", as quatro construções em linha reta na Serra da Estrela, ou mesmo as minhas últimas instalações vídeo. Todas estas obras estão imbuidas do sentido da procura das coisas primordiais e da noção da dimensão mágica que a arte pode ter. Tenho-me dedicado a explorar a cultura rural de que me julgo herdeiro e devedor. Nesta, tem-me interessado compreender as relações que as comunidades estabelecem com o território, com as plantas e com os animais, assim como o quanto de universal existe na condição humana de cada ser. As práticas agrícolas, tão importantes para a paisagem que resulta da interacção entre os seres humanos e o território, têm sido aprendidas, compreedidas e utilizadas na minha prática artística. Os próprios intrumentos usados, que tenho recolhido e guardado, são eles mesmos objectos interessantes não só pela relação que estabelecem com o corpo, com a terra e as plantas, mas também pelas possibilidades semânticas que nos emprestam. Na aproximação aos complexos mito-simbólicos da minha cultura (a minha cultura camponesa de origem),estes são ressemantizados na contemporâneidade. Pretendo que resultem em como que, desprendimentos de um pensamento mitológico vivo, posto em função do desenvolvimento de uma reflexão metafórico-filosófica acerca do Homem, da vida, da natureza e da sociedade, unida com princípios que plasmem uma visão do mundo. Ultrapassar o meramente individual e relacionar as carências individuais com o descontentamento implícito na condição humana. Tal como Gormley "vejo o artista como um trabalhador com um trabalho especial a desenvolver. Especialmente propondo problemas a serem explorados". Um desses "problemas", que me tem ocupado muito ultimamente, é o "problema " do território. E digo território, exactamente por querer diferenciar este do tema da paisagem ou até desse albergue espanhol que é a palavra natureza. O discurso que eu elaboro, situo-o dentro da disciplina da escultura com tudo o que esta palavra também transporta e proponho uma nova expansão de campo. Assim, nem arte como imitação da Natureza, nem arte como Natureza, nem Natureza, enquanto não se aceite - coisa improvável - o artifício como única Natureza. Quando tal suceder, teremos expandido ainda mais o campo e teremos que descobrir todo um léxico novo para nomear essa nova realidade.





Bibliografia:
GALOTARO, Luca - Artscapes, El arte como aproximación al paisaje contemporáneo
Editorial Gustavo Gili, Sa. Barcelona, 2003
CARERI, Francesco - Walkscapes, El andar como práctica estética
Editorial Gustavo Gili, Sa. Barcelona 2003
KRAUSS, Rosalind - La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos
Aliança Editorial, Sa. Madrid, 1996
KRAUSS, Rosalind - Caminhos da Escultura Moderna
Martins Fontes Editora lda, São Paulo 1998
Catàlogos:
Ana Mendieta - Centro Galego de Arte Contemporánea, 1996
Antony Gormley -Centro Galego de Arte Contemporánea, 2002


João Pereira 2005

Unknown disse...

João ainda estou a ler este texto, mas como ainda não acabei vou abster-me de tecer qualquer comentário sobre ele.

A razão deste meu comentário é sugerir-te que comeces a postar também no teu blog todos os posts que tens colocado sobre etnografia, artesanato e arqueologia no "Casegas vai nua".

Assim, não só enriqueces o teu blog, mas também tornas de mais fácil acesso esses conteúdos, uma vez que no "Casegas vai nua" há sempre pessoal a "postar" pelo que os teus posts estão sempre pouco tempo em local de destaque.

Abraço